Qual é a
atitude do cristão para com a guerra? É certo tirar a vida de outra pessoa sob
o mandamento do governo? Há uma base bíblica para a prática da guerra? Estas
perguntas têm recebido várias respostas entre os cristãos. Basicamente, há três
pontos de vista adotados pelos cristãos sobre a questão de se a pessoa deve
envolver-se na guerra, ao ponto de tirar a vida de outros. Primeiramente, há o ativismo que sustenta que o cristão
deve ir para todas as guerras em
obediência ao seu governo, porque o governo é ordenado por Deus. Em segundo
lugar, há o pacifismo que
argumenta que os cristãos não devem participar em guerra alguma ao ponto de tirar a vida
dos outros, visto que Deus ordenou aos homens nunca tirarem a vida de outra
pessoa. Finalmente, há o seletivismo que
argumenta que os cristãos devem participar dalgumas guerras, viz,
das guerras justas, visto que fazer doutra forma é recusar a fazer o bem maior
que Deus ordenou.
I. O ATIVISMO: É SEMPRE CERTO PARTICIPAR DA GUERRA
O argumento do
ativismo de que o cristão é obrigado, pelo seu dever de obedecer ao seu
governo, de participar de todas as guerras tem dois tipos diferentes de
argumentos: o bíblico, e o filosófico ou social. Os dados bíblicos serão
examinados primeiro.
A.
O
Argumento Bíblico: “O Governo É Ordenado Por Deus.”
As
Escrituras parecem ser enfáticas quanto a este aspecto. O governo é de Deus.
Seja no âmbito religioso, seja no âmbito civil, Deus é o Deus da ordem e não do
caos.1
1. Dados
Vétero-Testamentários sobre Deus e o Governo — Desde o
próprio princípio, as Escrituras declaram que o homem deve “dominar... sobre
todo animal que rasteja sobre a terra” (Gn 1: 28).2 O homem devia ser rei sobre toda a
terra. Depois da queda, foi dito à mulher: “o teu desejo será para o teu
marido, e ele te governará” (Gn
3:16). Quando Caim matou Abel, está subentendido que deixou de reconhecer que
era “tutor de seu irmão” (Gn 4:9,10). Finalmente, quando a totalidade da
civilização antediluviana se tornou corrupta, e “a terra estava … cheia de
violência,” Deus a destruiu e instituiu o governo humano. “Certamente
requererei o vosso sangue, o sangue da vossa vida … sim, da mão do próximo de
cada um requererei a vida do homem. Se alguém derramar o sangue do homem, pelo
homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem” (Gn 9:
5, 6).
Em
síntese, Deus ordenou o governo. Adão recebeu a coroa para reinar sobre a
terra, e quando o mal grassou, a Noé foi dada a espada para reger na terra. O
governo é da parte de Deus tanto porque a ordem é de Deus, quanto porque a
desordem deve ser abafada por Deus. Os homens têm o direito, da parte de Deus,
de tirar a vida de homens rebeldes que derramam sangue inocente. O governo é
investido de poder divino. A espada que foi dada a Noé foi brandida por Abraão
quando entrou na guerra contra os reis citados em Gênesis 14, que fizeram
agressão contra o sobrinho de Abraão, Ló. Conforme nota Stegall, esta passagem
indica “que Deus aprova guerras que são para a proteção dos pacíficos contra o
agressor.”3
Embora a forma
específica do governo mudasse no decurso do Antigo Testamento, há uma
reiteração deste princípio de que o governo é de Deus. Na teocracia mosaica, os
poderes do governo são muito explícitos: “Darás vida por vida, olho por olho,
dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento
por ferimento, golpe por golpe” (Êx 21: 23-25). Até mesmo quando Israel
estabeleceu sua monarquia de modo contrário ao plano de Deus para ele (1 Sm 8:
7), Deus, mesmo assim, ungiu o rei que escolheu. Deus disse a Samuel o profeta:
“Atende à sua voz, e estabelece-lhe um rei” (1 Sm 8: 22). Mais tarde, Samuel
disse: “Vedes a quem o SENHOR escolheu?” (1 Sm 10: 24). Davi, até mesmo antes
de ser rei, recebeu a ordem no sentido de lutar contra os filisteus que estavam
despojando a Israel (1 Sm 23:1).
No que diz respeito
aos governos das nações gentias, o Antigo Testamento declara “que o Altíssimo
tem domínio sobre o reino dos homens e dá a quem quer” (Dn 4: 25). E com base
no restante da profecia de Daniel, fica claro que Deus ordenou os grandes
governos babilônio, medo-persa, grego e romano (cf. Dn 2, 7). De fato, a
indicação é que Deus ordenou o governo sempre que é achado. E visto que o
governo é dado por Deus, seguir-se-ia que desobedecer ao governo é desobedecer
a Deus. Se, portanto, o governo dalgum homem ordena que ele vá à guerra, o
ativismo bíblico argumentaria que a pessoa deve corresponder, em obediência a
Deus, pois Deus ordenou o governo com a espada, ou o poder de tirar vidas.
2. Dados
Neotestamentários Sobre Deus e o Governo — O Novo Testamento confirma o conceito do
Antigo Testamento, de que Deus ordenou o governo. Jesus é citado dizendo que o
homem deve dar, pois, “a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt
22: 21). Que a autoridade civil foi dada por Deus foi ainda mais reconhecido
por Jesus, diante de Pilatos, quando disse: “Nenhuma autoridade terias sobre
mim, se de cima não te fosse dada” (Jo 19:11). Paulo admoesta Timóteo a orar e
dar graças “em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de
autoridade …” (1 Tm 2: 2). Tito é exortado a respeito dos cretenses:
“Lembra-lhes que se sujeitem aos que governam, às autoridades; sejam
obedientes… ” (Tt 3: 1). Pedro é muito claro: “Sujeitai-vos a toda instituição
humana por causa do Senhor; quer seja ao rei, como soberano; quer às
autoridades como enviadas por ele. ..”(lPe2: 13, 14).
A passagem mais
extensa do Novo Testamento sobre o relacionamento entre o cristão e o governo
acha-se em Romanos 13: 1-7. O primeiro versículo deixa claro que todo governo é
divinamente estabelecido. “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores;
porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem
foram por ele instituídas,” escreveu Paulo. “De modo que aquele que se opõe à
autoridade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si
mesmos condenação” (v, 2). A razão adicional para obedecer a um governante é
que “é ministro de Deus para teu bem… é ministro de Deus, vingador, para
castigar o que pratica o mal” (v. 4). Além disto, escreveu Paulo: “Por esse
motivo também pagais tributos: porque são ministros de Deus, atendendo
constantemente a este serviço” (v. 6). Tendo em vista estes fatos, o cristão é
conclamado! “Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem
imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra” (v. 7).
O que há de
especialmente relevante nesta passagem da Escritura, é a reiteração, no Novo
Testamento, do poder governamental de tirar uma vida humana. Os cristãos são
conclamados a obedecer ao governante ou rei existente, “porque não é sem motivo
que traz a espada” (v. 4). Ou seja: o governo, com seu poder sobre a vida, é
ordenado por Deus. E quem resistir ao seu governo está resistindo a Deus.
Seguir-se-ia disto, segundo os ativistas bíblicos, que a pessoa deve responder
à chamada do seu governo para ir à Guerra, porque Deus deu a autoridade da
espada às autoridades governantes.
B. O Argumento Filosófico: O Governo É o Guardião do Homem
O ativismo não é
apoiado meramente com os dados bíblicos. Um dos argumentos mais enfáticos já
escritos em prol desta posição veio da pena de Platão. Oferece três razões
explícitas (e mais duas subentendidas) sobre por que o homem não deve
desobedecer até a um governo que o condena a uma morte injusta. O cenário é a
prisão onde Sócrates aguarda sua morte, tendo sido acusado de impiedade e
sentenciado a beber o cálice de veneno. O jovem amigo de Sócrates, Cristo,
conclama-o a escapar e fugir da pena de morte. Na resposta de Sócrates, cinco
razões são dadas para obedecer a um governo injusto, mesmo até ao ponto da
morte.
1.
O Governo É o Pai do Homem — A
pessoa não deve desobedecer até mesmo a um governo injusto. “Primeiro, porque
ao desobedecer a ele, está desobedecendo aos seus pais.” Com isto, Sócrates
queria dizer que foi sob o patrocínio daquele governo que o indivíduo foi
trazido ao mundo. Não nasceu na selva, sem lei, mas, sim, entrou no mundo tendo
Atenas como genitor. Foi este Estado que tornou seu próprio nascimento mais do
que bárbaro — um nascimento num estado de civilização, e não de anarquia. Em
síntese, assim como os pais passam meses em preparação e antecipação para uma
criança, assim também muitos anos foram gastos em manter o Estado que torna
possível um nascimento civilizado, e estes anos não podem ser considerados
levianamente mais tarde porque a pessoa se acha em desacordo com o seu governo.
Foi aquele governo (ou algum governo) que possibilitou seu livre nascimento. Se
alguém desobedecesse ao governo, disse Sócrates, ele não responderia: “Em
primeiro lugar não fomos nós que te trouxemos à existência? Teu pai casou com
tua mãe com nossa ajuda, e te geraram. Dize se tens quaisquer objeções a
argumentar contra aqueles entre nós que regulamentamos o casamento? Nenhuma,
responderia eu.”4
2. O
Governo É o Educador do Homem — Sócrates oferece outra razão para a
obediência ao seu governo. “Em segundo lugar, porque é o autor da sua
educação.” A implicação aqui é que a própria educação que faz com que uma
pessoa seja o que é hoje (inclusive, seu conhecimento da justiça e da
injustiça), lhe foi dada pelo seu governo. Era um grego e não um bárbaro, não
somente por nascimento como também por seu treinamento. E tanto o nascimento
quanto o treinamento foram possibilitados pelo governo que agora estava
exigindo sua vida. O que se pode responder contra governos que, “depois do
nascimento, regulam a criação e a educação dos filhos, em que tu também foste
treinado? As leis que regulam a educação não estavam certas em ordenar que teu
pai te treinasse na música e na ginástica? Certas, eu responderia.”5 Segue-se
daí que o governo poderia dizer-nos: “Visto que foste trazido ao mundo, e
criado e educado por nós, podes negar, em primeiro lugar, que és nosso filho e
escravo, como vossos pais o eram antes de ti?” E se é esta a verdade, o homem
não está em pé de igualdade com seu governo. O homem não tem mais direito de
golpeá-lo e ultrajá-lo do que alguém faz ao seu senhor ou pai. Mesmo se o
governo quer nos destruir, não temos direito algum de destruí-lo. Se alguém
pensa que tem este direito, “deixou de descobrir que sua pátria é mais valiosa,
e superior, e mais santa, em muito, do que a mãe e o pai ou quaisquer
antepassados… “Em síntese, o governo não somente é prévio ao cidadão individual
(o primeiro argumento), como também é superior a ele. O governo não somente
antecede a vida individual como também toma precedência sobre sua vida.
3. O
Governado (i.e., o Cidadão) Comprometeu-se a Obedecer ao Seu Governo — terceira
razão que Platão dá para a obediência ao governo é que “fez um acordo com ele
de que obedecerá devidamente aos seus mandamentos.” Ou seja: o consentimento do
governado para fazer daquele governo o governo dele, ao comprometer-se à
fidelidade a ele, obriga-o a obedecer às suas leis ou sofrer as conseqüências.
Pelo próprio fato de que um homem faz de um determinado país seu país, por isso mesmo fez um
acordo tácito de ser obediente aos seus mandamentos. “E quando somos castigados
por ela (nossa pátria), quer com prisões, quer com açoites,” escreveu Platão,
“o castigo deve ser suportado em silêncio; e se ela nos levar a feridas ou à
morte na batalha, para lá iremos conforme é justo.” Porque se alguém vai
aceitar os privilégios da educação e da proteção do seu governo, então,
concordou, implicitamente, que aceitará as responsabilidades (e as penalidades)
do seu governo, no sentido de obedecer às suas leis e até mesmo ir à guerra por
ela.
4. O
Governado Não Está Compelido a Permanecer Sob Seu Governo — Há pelo
menos dois outros argumentos subentendidos que Platão usa para apoiar sua tese
de que não se deve desobedecer ao seu governo. “Qualquer pessoa que não gosta
dele nem da cidade, pode ir para onde quiser… Mas aquele que tem experiência da
maneira segundo nós (i.e., os governantes) ordenamos a justiça e administramos
o Estado, e ainda permanece, entrou num contrato subentendido de que fará tudo
conforme nós ordenamos.” Platão deixa claro, no entanto, que qualquer imigração
que alguém vai fazer deve ser feita antes dele
ser indiciado pela sua pátria ou convocado ao serviço militar. Porque fugir
diante das responsabilidades ao seu governo é “fazer apenas o que um escravo
miserável faria, fugindo e virando as costas aos entendimentos e contratos
feitos como cidadão.” Noutras palavras, se alguém não estiver disposto a
obedecer à sua pátria, deve achar outra pátria à qual possa obedecer. Mas se um
homem tomar a proteção e os privilégios de um país mediante sua presença
constante ali como cidadão, não deve procurar exílio simplesmente porque as
exigências do seu país sobre ele são indesejáveis.
5. Sem
Governo Haveria Caos Social — Outra razão porque a pessoa não deve
desobedecer ao seu governo está subentendida na pergunta de Platão: “E quem se
importaria com um Estado que não tivesse leis?” Uma lei injusta é má, mas
nenhuma lei é ainda pior. Até uma monarquia má é preferível à anarquia.
Qualquer governo é melhor do que nenhum governo. E se os homens desobedecerem
seu governo naquilo que sentem ser injusto ou indesejável, resultará o caos
social. Porque se a obediência ao governo é determinado Individual ou
subjetivamente, nenhuma lei estaria imune da desaprovação ou da desobediência
dalgum cidadão. O resultado seria caótico. Tomando emprestada uma frase das
Escrituras, não ter leis obrigatórias para todos os cidadãos seria “todo homem
fazer o que é reto
aos seus próprios olhos.” E esta não seria uma sociedade verídica, mas, sim, um
caos social. Até mesmo um governo fechado aos seus cidadãos seria melhor do que
um que estivesse aberto à revolução entre seus povos.
Nestes cinco
argumentos, Platão declarou os argumentos principais usados como uma base para
o ativismo. O homem sempre deve obedecer ao seu governo porque é seu guardião.
O governo — até mesmo um que parece ser injusto — deve ser obedecido ao ponto
de ir à guerra. Sem o governo, pois, o homem não seria melhor do que um
selvagem, vivendo num estado de ignorância e de anarquia. Logo, não importa
quão indesejáveis possam ser as responsabilidades da pessoa ao seu governo,
mesmo assim, está obrigada a obedecer a ele como a seu pai e à sua mãe.
Os escritores
contemporâneos não acrescentaram muitas considerações importantes aos
argumentos bíblicos e clássicos em prol do ativismo. Um argumento global não
incluído explicitamente nos cinco mencionados supra é que é um mal maior não
resistir a um agressor mau do que lutar contra ele. Isto relembra a linha
famosa: “Tudo quanto é necessário para o mal triunfar é que os homens bons não
façam nada.” Se os homens bons não resistirem aos maus, então, os maus
prevalecerão no mundo.
Naturalmente,
há um problema básico na posição dos ativistas, que os pacifistas se apressam
em indicar, e que é o seguinte: na maioria das guerras, ambos os lados alegam
estar com a razão. Freqüentemente cada país alega que o outro é o agressor. O
“inimigo” sempre está errado, mas os dois países são “inimigos,” sendo que cada
um é inimigo do outro. A esta altura, os ativistas totais parecem obrigados a
reconhecer que as duas partes (ou os dois países) numa guerra nem sempre estão
com a razão. Mas ainda que um dos países está participando de uma guerra
injusta, seus cidadãos têm o dever de responder à convocação militar, porque a
desobediência ao governo (até mesmo um governo mau) é um mal maior do que a
obediência a ele numa guerra injusta. Desobedecer a qualquer governo leva à
revolução e à anarquia, que é um mal maior do que participar de uma guerra em
que uma forma de ordem está competindo com outra, para ver qual forma de ordem
dominará. Em síntese, o ativista completo pode argumentar que seria melhor
lutar do lado de uma ordem que é pior do que outra ordem, do que contribuir,
mediante a desobediência, à desordem e ao caos totais. E se alguém tivesse
dúvidas sobre qual governo era o melhor ou o mais justo, poderia contentar-se
com a obediência ao seu próprio governo pela razão de ser ele o seu guardião e educador. E quer
seu próprio país fosse o mais justo ou não, poderia lutar por ele, crendo que o
resultado da guerra revelaria de que maneira a justiça triunfará.
II. O PACIFISMO: NUNCA É CERTO PARTICIPAR DA GUERRA
Há muitas
razões porque o pacifismo rejeita os argumentos dos ativistas. As razões dadas
pelo pacifista podem servir tanto como uma crítica do ativismo total, quanto
como a outra metade do diálogo sobre a guerra que força o cristão a examinar
tanto sua Bíblia quanto sua consciência para uma conclusão sobre um problema
inquietante. Os argumentos em prol do pacifismo podem ser divididos em dois
grupos básicos, o bíblico e o social.
A.
Os
Argumentos Bíblicos: A Guerra Sempre É Errada
Há muitos aspectos
no argumento do pacifista cristão contra todas as guerras, mas há várias
premissas bíblicas por detrás de todos eles. Uma destas premissas está
declarada na injunção bíblica: “Não matarás” (Êx 20:13), e a outra nas palavras
de Jesus: “Não resistais ao perverso” (Mt 5: 39).
1. Matar
Sempre É Errado — No
coração do pacifismo há a convicção de que tirar a vida intencionalmente,
especialmente na guerra, é básica e radicalmente errado. A proibição bíblica:
“Não matarás,” inclui a guerra. A guerra é o assassinato em massa. Mas o
assassinato é o assassinato, quer seja cometido dentro da própria sociedade ou
contra homens doutra sociedade.
Visto que esta
conclusão, à primeira vista, é contrária aos muitos casos na Escritura que,
segundo parece, parecem ordenar a guerra, os pacifistas cristãos devem oferecer
uma explicação de por que a Bíblia dá a impressão de, às vezes, ordenar a
guerra.
Várias
respostas têm sido dadas por diferentes pacifistas. (1) Primeiramente, as
guerras do Antigo Testamento, em que se representa Deus “ordenando” a guerra
(e.g. a de Josué) não foram realmente ordenadas por Deus de modo algum.
Representam um estado mais bárbaro da humanidade em que as guerras eram
justificadas ao ligar a elas sanções divinas.6 (2) Outra explicação é que estas
guerras eram sem igual, porque Israel estava agindo como instrumento teocrático
nas mãos de Deus. Estas não eram realmente as guerras de Israel de modo algum,
mas, sim, as de Deus, conforme é evidenciado pelos milagres especiais que Deus
operava para ganhá-las (cf. Js 6; 10; Salmo 44). (3) Finalmente às vezes é
argumentado que as guerras do Antigo Testamento não eram a “perfeita” vontade
de Deus, mas, sim, somente Sua vontade “permissiva”. Ou seja: retrata-se a Deus
“ordenando” Samuel a ungir Saul como rei, ainda que Deus não lhe tivesse
escolhido Saul para rei, mas, sim, Davi (1 Sm 10: 1). Ou, as guerras são
“ordenadas” por Deus da mesma maneira que Moisés “ordenou” o divórcio, viz.,
por causa da dureza dos corações dos homens (Mt 19:8). Não é que Deus realmente
desejava ou ordenava a guerra mais do que Ele gosta da desobediência ou do
divórcio. Deus tem um caminho melhor do que aquele, que é o da obediência e do
amor. Deus poderia ter realizado Seus propósitos em Israel e em Canaã sem
guerras, se o povo tivesse sido mais obediente a Ele.7
Nenhuma guerra como
tal é o mandamento de Deus em ocasião alguma. O que Deus manda de forma clara e
inequívoca é: “Não matarás.” Este mandamento aplica-se a todos os homens, amigos
ou inimigos. Todos os homens são feitos à imagem de Deus e, portanto, é errado
matá-los. O Antigo Testamento ensina claramente que a pessoa deve amar seus
inimigos (cf. Lv 19: 18, 34; Jonas 4), e Jesus reafirmou este ensino, dizendo:
“Amais vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem…” (Mt 5: 44). A guerra
baseia-se no ódio, e é intrinsecamente errada. Tirar a vida de outras pessoas é
contrário ao princípio do amor e é, portanto, basicamente não-cristão.
2. Resistir
ao Mal, à Força, É Errado — Em conexão estreita com a primeira
premissa básica do pacifismo, do que é errado matar, há outra, viz, o mal nunca
deve ser resistido com força física, mas, sim, com a força espiritual do amor.
Jesus não disse: “Não resistais ao perverso; mas a
qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra” (Mt 5:39)?
Cristo não ensinou também nesta passagem: “Se alguém te obrigar a andar uma
milha, vai com ele duas” (v. 41)? O cristão não deve retaliar nem pagar o mal
com o mal. A vingança pertence a Deus (Dt 32: 35). Paulo escreveu: “Não vos
vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira… Pelo contrário, se o teu
inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber… Não te
deixes vencer do mal, vence o mal com o bem” (Rm 12:19), 21). O cristão não
deve “tornar a ninguém mal por mal… se possível, quanto depender de vós, tende
paz com todos os homens” (vv. 17-18).
A
história de Jesus expulsando os cambistas do Templo não é incompatível com esta
posição, argumentam alguns pacifistas. Porque a força física (i.e. o azorrague)
somente foi usado nos animais, não nas pessoas. Além disto, a autoridade que
Jesus usava foi aquela da Sua própria Pessoa e a da Escritura, e não a de um
bando de discípulos armados (cf. Jo: 2: 15-16). Finalmente, o tipo de força
física usado por Jesus no Templo, fica muito aquém de comprovar que Jesus daria
Sua sanção ao uso da força física extrema ao ponto de tirar vidas humanas.8
Além
disto, a declaração de Jesus: “Não vim trazer paz, mas espada,” não pode ser
usada para apoiar a guerra. Jesus, pois, ordenou a Pedro: “Embainha a tua
espada; pois todos os que lançam mão da espada, à espada perecerão.”9 Jesus
não estava definindo o propósito do
Seu ministério, mas seu resultado, viz,
que o efeito da lealdade a Ele iria “causar divisão entre o homem e seu pai;
entre a filha e sua mãe…” (v. 35). Ou seja: o efeito do
ministério de Cristo é freqüentemente dividir famílias como por uma “espada”
(Lucas 12: 51 usa a palavra “divisão” ao invés de “espada”), ainda que esta não
seja a intenção da
Sua vinda.
O pacifismo está
comprometido com a premissa de que é essencialmente errado usar força física,
pelo menos, até ao ponto de tirar vidas, a fim de resistir ao mal. Isto não
significa que o pacifista repudia toda a força. Significa apenas que acredita
em afirmar a força maior do bem espiritual em face das forças do mal físico. Os
pacifistas acreditam basicamente que “a nossa luta não é contra o sangue e a
carne, e, sim, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Ef.
6:12).
Quando é encostado
contra a parede por um militante ativista que pergunta se mataria um assassino
em potencial da sua esposa, o pacifista completo às vezes retorque com uma
resposta devastadora na sua simplicidade. Para que matar um assassino maligno,
e mandar sua alma para o julgamento, quando permitir que o assassino matasse
sua esposa teria como resultado que ele a mandasse ao céu, e ainda sobraria uma
oportunidade para ganhar o assassino? O pacifista menos simplista (ou talvez
qualquer pacifista com uma esposa não-cristã) talvez argumentasse que ferir e
desarmar o assassino seria suficiente, mas que não se deve procurar matar até
mesmo um assassino.
Dietrich
Bonhoeffer fez a pergunta pacifista crucial quanto a isto. “Estou em qualquer
tempo agindo somente como um simples particular, ou apenas numa capacidade
oficial? Não sou sempre um indivíduo, face a face com Jesus, mesmo na
realização dos meus deveres oficiais?” Responde a esta pergunta, dizendo: “Mas
esta distinção entre as pessoas e o cargo está totalmente estranha ao ensino de
Jesus. Dirige-se aos Seus discípulos como a homens que deixaram tudo para
seguir a Ele, e o preceito da não-violência aplica-se igualmente na vida
particular e no dever oficial.”10 Uma ética de padrão duplo — um para o
cidadão particular e outro para o oficial público — é estranha ao ensino da
Escritura. A Bíblia pronuncia: “Ai dos que decretam leis injustas, dos que
escrevem leis de opressão, para negarem justiça aos pobres… ” O profeta
perguntou-lhes: “Mas que fareis vós outros no dia do castigo, na calamidade que
vem de longe? (Is 10: 1-3). Davi foi tido por culpado quando deu origem à morte
de Urias a fim de tomar sua esposa, Bate-seba, embora a morte ocorresse numa
batalha enquanto Israel estava numa guerra (2 Sm 12:5-7).
Ninguém é exonerado
do mandamento de Deus, no sentido de não matar, simplesmente, porque está agindo
como servo do Estado. O mandamento moral contra o assassinato não é abrogado
pela obrigação da pessoa ao Estado. Devemos dar a César o que é dele, mas César
não detém o poder da vida ou da morte — somente Deus o detém. O direito de
tirar uma vida pertence somente ao próprio Autor da vida (cf. Jó 1:21). Nenhuma
autoridade tem o direito de transcender a lei moral. Realmente, a autoridade
que o governo detém é derivada da lei moral. E a lei moral é aplicável sem
fazer distinção entre a pessoa ou o cargo.
B.
Os
Argumentos Sociais: A Guerra É Sempre Má
Há fortes argumentos
sociais contra a guerra. Não é a melhor maneira de solucionar disputas humanas.
Um rio de sangue humano tem sido deixado no séquito das guerras, e no curso da
História. Males de todos os tipos resultam da guerra; a fome, a crueldade, as
pessoas e a morte.
Talvez seja este
senso de futilidade da guerra que tenha levado tantos pensadores para a posição
pacifista. Lemas tais como “Faça amor e não a guerra,” “Abaixo a Bomba,” e a
popularidade do sinal da paz e o símbolo da “pomba” retratam uma crescente
insatisfação com a guerra como meio de tratar com outras nações. Até mesmo
alguns que não são pacifistas por convicção estão dispostos a arriscar o
desarmamento unilateral total na esperança de que uma resposta semelhante seja
elicitada do inimigo. “Não pode ser pior do que a guerra”, exclamam, numa
tentativa desesperada pela paz.
Em resumo: os
pacifistas argumentam que a guerra é tanto antibíblica quanto antisocial. É
proibida por Deus no mandamento contra o assassinato, e está se tornando cada
vez mais repugnante aos homens, que estão demonstrando sinais de fadiga da
batalha debaixo da continuação das desumanidades dos homens para com outros
homens.
III. O SELETIVISMO: É CERTO PARTICIPAR DE ALGUMAS GUERRAS
Nem todos
os homens estão contentes com o patriotismo cego do patriotismo que mataria a
pedido do governo, gritando: “Minha pátria, certa ou errada!” Nem todos os
homens estão satisfeitos com uma atitude ingenuamente passiva que permitiria
que Hitler tentasse o genocídio, sem erguer um fuzil em resistência. Até mesmo
o previamente pacifista Bonhoeffer finalmente concluiu que Hitler deveria ter
sido assassinado. A partir da insatisfação com as soluções “fáceis” de declarar
justas todas as guerras, ou nenhuma guerra justificável, está
emergindo um número crescente de partidários do seletivismo, que sustenta que algumas guerras são justificáveis,
e outras não. É este ponto de vista que nos parece ser a alternativa mais
satisfatória para o cristão.
A.
Uma
Base Bíblica para o Seletivismo
Tanto o ativismo
quanto o pacifismo reivindicam o apoio da Escritura. O seletivismo é apenas uma
terceira maneira de interpretar os mesmos dados bíblicos? Respondendo,
sugerimos que tanto o ativismo quanto o pacifismo têm razão (pelo menos
parcialmente) e que o sentido em que ambos têm razão é a essência do
seletivismo. Noutras palavras, o seletivismo é uma síntese do ativismo e do
pacifismo. A verdade do pacifismo é que algumas guerras são justas e que os
cristãos devem lutar nestas. O seletivismo, portanto, firma-se na posição de
que a pessoa deve participar somente de uma guerra justa.
Na
realidade, há um ponto de concordância (pelo menos, teoricamente) entre todos
os três pontos de vista. Todos podem concordar com a seguinte proposição ética:
Não se deve participar de urna guerra injusta. O pacifista, naturalmente, sente
que todas as guerras são injustas. O
ativista sustenta que nenhuma guerra
é injusta (ou, pelo menos, se houver algumas guerras injustas, a participação
nelas não é errada, E o seletivista argumenta que, em princípio, algumas
guerras são injustas e outras são justas. Logo, para apoiar um seletivismo
cristão, a pessoa deve demonstrar não somente que: (1), pelo menos, algumas
guerras são justas em princípio (demonstrando, assim, que o pacifismo total
está errado), e também
(2) algumas guerras são injustas em princípio (demonstrando, assim, que o
ativismo está errado).
1.
Algumas Guerras São Injustas — A rejeição do ativismo total é apoiada
pelas Escrituras. A Bíblia, pois, ensina que nem sempre é certo obedecer ao seu
governo em tudo quanto ordena, e especialmente quando seus mandamentos
contradizem as leis espirituais superiores de Deus. Há claros exemplos disto na
Bíblia. Os três jovens hebreus desobedeceram o mandamento do rei no sentido de
adorar um ídolo (Dn 3). Daniel violou uma lei que proibia de orar a Deus (Dn
6). Os apóstolos desobedeceram às ordens no sentido de não pregarem o Evangelho
de Cristo (Atos 4 e 5). E, num caso muito claro de desobediência, divinamente
aprovada, à lei civil, as parteiras hebréias no Egito desobedeceram o
mandamento no sentido de matar todos os nenês do sexo masculino que nascessem.
Está escrito: “As parteiras, porém, temeram a Deus, e não fizeram como lhes
ordenara o rei do Egito, antes deixaram viver os meninos … E Deus fez bem às
parteiras; e o povo aumentou e se tornou muito forte.” Além disto, “porque as
parteiras temeram a Deus, ele lhes constituiu família” (Êx 1: 17,19-21). Esta
passagem ensina claramente que é errado tirar a vida de um ser humano inocente,
ainda que o governo “ordenado por Deus” o determine. O governo que assim manda
pode ser ordenado por Deus, mas o mandamento moralmente injustificável não foi
ordenado por Deus. Os pais de Jesus evidenciaram a mesma convicção de que o
governo não tinha direitos sobre a vida humana inocente, visto que, sob a
orientação de Deus, fugiram diante da tentativa de Herodes de matar o menino
Jesus (Mt 2:13-14).
Podemos,
facilmente, concluir destas Escrituras que o governo nem sempre deve ser obedecido,
especialmente quando suas ordens entram em conflito com as leis superiores de
Deus a respeito de tirar vidas humanas inocentes. E visto que o governo não é
soberano na questão de tirar vidas, segue-se que nem todas as guerras feitas
pelo governo são justas. De fato, até mesmo dentro de uma guerra justa pode
haver ordens injustas que devem ser desobedecidas. Mas se há ocasiões em que a
pessoa não deve obedecer as ordens do seu governo no sentido de matar, neste
caso o ativismo total está errado. Ou seja: nem todas as guerras, nem todos os
atos de guerra, são moralmente justificáveis pelo motivo da pessoa estar agindo
em obediência a seu governo. Esta foi a conclusão dos processos de Nuremberg
que seguiram a Segunda Guerra Mundial, e que foi usada outra vez no incidente
de My Lay, no Vietname. O princípio moral aplicado nos dois casos é que nenhum
membro individual das forças armadas de qualquer país deve ser desculpado por
praticar um crime de guerra, simplesmente porque foi ordenado a cometer o ato
por seu oficial superior. O mal é o mal, quer um governo o ordene, ou não. A
Bíblia deixa claro o fato que a pessoa nem sempre deve
obedecer ao governo.
2.
Algumas Guerras São Justas — As Escrituras ensinam que nem todas as
guerras são necessariamente más. Ou seja, de modo contrário ao pacifismo,
algumas guerras são justas. Tirar uma vida é freqüentemente ordenado por Deus,
tanto dentro de uma nação quanto entre nações. Nem sempre tirar a vida é
assassinato. Às vezes Deus delega a autoridade de tirar uma vida humana a
outros seres humanos. Este foi claramente o caso do poder do castigo capital
dado a Noé depois do dilúvio (Gn 9:6), que foi reiterado por Moisés na lei para
Israel (Êx 21: 26), e que foi reafirmado por Paulo como sendo o poder que
residia no imperador de Roma (Rm 13:4), e foi até mesmo subentendido por Jesus
diante de Pilatos (Jo 19:11). Fica evidente, com base nestas passagens, que
todo governo, até mesmo à parte do governo teocrático de Israel, recebeu
autoridade divina para tirar a vida dalgum dos seus cidadãos culpados de um
crime capital.
Há uma
citação um pouco mais negligenciada de Jesus que talvez dê apoio à alegação de
que o indivíduo tem o direito de brandir uma espada em defesa própria. É bem
conhecido que Jesus admoestou Seus discípulos a não propagarem o Evangelho com
a espada (Mt 26: 52) e tampouco a resistir à perseguição religiosa com a força
física (Mt 5:39). Mas às vezes é olvidado que Jesus mandou Seus discípulos
comprarem uma espada, (para sua própria proteção). Disse-lhes: “O que não tem
espada, venda a sua capa e compre uma” (Lucas 23:36). Visto que as espadas eram
proibidas por Jesus, ou para o propósito de apoiar a pregação do Evangelho ou
para a defesa contra ser perseguido por causa do Evangelho (cf. Jo 18: 11), que
propósito estava por detrás do mandamento de Jesus aos discípulos no sentido de
venderem suas roupas externas e comprar uma espada? Se as espadas eram
excluídas por Jesus por motivos religiosos, podemos assumir que eram incluídas
por motivos civis. Ou seja: as espadas não são armas válidas para travar
batalhas espirituais, mas
são ferramentas legítimas para a defesa civil da pessoa. Aqui parece haver a sanção de Jesus ao
uso justificável de um instrumento de morte na defesa contra um agressor
injusto. Ou seja: Jesus ordenou o uso da espada como meio de auto-defesa.13
A história da
batalha de Abraão contra os reis, em Gênesis 14, dá apoio ao princípio de que
agressores nacionais injustos devem ser resistidos da mesma maneira que
agressores individuais injustos (cf. também 1 Sm 23:1-2). As nações, assim,
como os indivíduos, podem ser salteadoras e assassinas. E seria uma lógica
falsa argumentar que a pessoa deve resistir a um homem assassino com a espada,
mas deixar um país assassino tripudiar milhares de pessoas inocentes.
Mais apoio para a
posição de que o poder militar defensivo às vezes é justificável pode ser
deduzido da vida do apóstolo Paulo. Quando sua vida foi ameaçada por homens
indomáveis, apelou à sua cidadania romana e aceitou a proteção do exército
romano (At 22:25-29). Em certa ocasião alguns homens dedicaram-se a matar
Paulo, mas este foi levado sob a proteção de um pequeno exército (At 23: 23).
Não há razão para crer que o apóstolo não considerasse seu direito de cidadão
ser protegido pelo exército da agressão injusta contra a sua vida. Pelo
contrário, suas ações demonstram claramente que, como cidadão romano, exigia
esta proteção. E o princípio de empregar o poder militar na auto-defesa pode
ser entendido a uma nação, e não somente a indivíduos. Porque, conforme os
pacifistas reconhecem também, não há no Novo Testamento um padrão duplo de
moralidade, uma regra para o indivíduo e outra para o país. Afinal das contas,
os países são compostos de muitos indivíduos. Deus às vezes ordena que os
homens usem a espada para resistir aos homens maus. O militar não tem uma
ocupação má (Lc 3:14).
Talvez
deva ser dita uma palavra aqui acerca da maneira inaceitável do pacifista
explicar os “mandamentos” de Deus como sendo puramente culturais ou como
concessões à pecaminosidade humana. Este tipo de hermenêutica subverteria a
confiança do cristão em todos os mandamentos da Escritura. Quando um mandamento
é condicional ou cultural, as Escrituras revelam que é assim. Por exemplo,
Jesus indicou que Moisés não tinha realmente ordenado o
divórcio, mas meramente o permitiu (Mt 19:8). Semelhantemente, a Bíblia
claramente indica que a ordem que Deus deu para Saul ser ungido rei sobre
Israel era uma concessão, e não o desejo de Deus para Israel (cf. 1 Sm 8: 6-9).
No entanto, não há semelhante indicação que Deus queria que Israel “fizesse o
amor e não a guerra” com os cananitas. Estes estavam além da possibilidade de
serem ganhos: eram incuravelmente malignos e Deus ordenou que fossem
exterminados (cf. Lv 18:27,28; Dt 20:16,17). Nem há qualquer indicação de que a
pena capital era aplicada a assassinos, simplesmente porque a cultura então
prevalecente assim ensinava, ou porque o povo não amava suficientemente o
assassino. A implicação da Escritura é que a pena capital era exatamente o que
Deus queria que fosse feito a tais assassinos (cf. Gn 9:16; Rm 13:4).
Assim,
também, os mandamentos a Israel no sentido de travar a guerra contra Canaã
realmente foram ordenados por Deus. Lemos continuamente no livro de Josué
declarações tais como estas: “Destruiu a tudo o que tinha fôlego, sem deixar
sequer um, como ordenara o SENHOR Deus de Israel” (Js 10: 40). Até mesmo
antes de Israel ter entrado em Canaã, os israelitas receberam esta ordem:
“Porém, das cidades destas nações que o SENHOR teu Deus te dá em herança, não
deixarás com vida tudo o que têm fôlego. Antes, como te ordenou o SENHOR teu
Deus destruí-las-ás totalmente… ” (Dt 20: 16, 17). No que diz respeito a todas
as cidades fora de Canaã, foram ordenados: “Quando te aproximares de alguma
cidade para pelejar contra ela, oferecer-lhe-ás a paz. Se a sua resposta for de
paz, e te abrir as portas, todo o povo que nela se achar, será sujeito a
trabalhos forçados e te servirá. Porém, continua, “se ela não fizer paz
contigo, mas te fizer guerra, então a sitiarás;… e todos os do sexo masculino
que houver nelas passarás ao fio da espada; mas as mulheres, as crianças, e os
animais, e tudo o que houver na cidade, todo o seu despojo, tomarás para ti”
(Dt 20: 10-17). Neste caso, travar a guerra era condicional, mas não era assim
o mandamento de Deus para travar a guerra com os cananitas.
Pode-se concluir
desta passagem, que Deus não somente sancionava a guerra de extermínio dos
cananitas, como também aprovava outras guerras justas contra povos que não
queriam aceitar uma paz justa, mas, sim, “saíam lutando.” Em síntese, o
mandamento de Deus quanto a ocupar-nos em guerras justas não pode ser limitado
aos propósitos teocráticos de Deus no sentido de exterminar os cananitas
malignos. Até mesmo nas monarquias posteriores, declara-se que Deus ordenou a
Israel guerrear contra seus agressores (cf. 2 Cr 13: 15, 16; 20: 29). Na
realidade, no curso do Antigo Testamento e do Novo, Deus ordenou a guerra como
instrumento da causa da justiça. Até o próprio Israel apóstata, a despeito do
seu relacionamento especial com Deus mediante a aliança, ficou sendo a vítima
de governos levantados por Deus para derrotá-lo (cf. Dt 28:25ss.; Dn 1:1, 2).
Nabucodonosor (Dn 4:17), Ciro (Is 44:28), e até mesmo Nero são descritos como
servos de Deus, com o poder da espada. Paulo escreveu acerca deste último:
“Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a
espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal”
(Rm 13:4). A partir disto fica evidente que os governantes gentios, nos dois
Testamentos, receberam a espada para promover o bem e resistir ao mal.
Logo, o
pacifismo total, pelo motivo alegado de que nunca se deve tirar uma vida
humana, é não-bíblico. A proibição é contra o assassinato, não
contra tirar vidas. Nem sempre tirar uma vida é assassinato, segundo a Bíblia.
A pena capital não é assassinato. A guerra em defesa dos inocentes não é
assassinato. E uma guerra contra um agressor injusto não é assassinato. O
pacifista total não está olhando de modo justo todos os dados da Escritura.
Pelo contrário, apega-se à proibição contra o assassinato, desconsidera os
versículos em que Deus exige que a vida dos homens maus seja tirada, visando a
defesa dos inocentes; e supõe, ingenuamente, que qualquer ato de tirar uma vida
é assassinato.
B. A Base Moral para o Seletivismo
O seletivismo pode
ser defendido em outras bases, além das bíblicas. Há fortes argumentos morais
que também podem ser oferecidos em seu favor. Duas de tais razões morais para o
seletivismo agora são oferecidas.
1. Tanto
o Pacifismo Quanto o Ativismo São Fugas Morais — Sustentar,
ou o pacifismo completo, ou o ativismo total, é a saída moral fácil de uma
posição ética difícil. É muito fácil para alguém deixar sua pátria decidir por
ele que todas as guerras são justas. Isso absolve o cidadão individual de
qualquer luta para decidir se a guerra para a qual está sendo convocado é justa
ou injusta. Realmente não importa, porque a obediência ao governo sempre é
certa; o governo é responsável pela guerra. O soldado não está agindo como
indivíduo, mas, sim, como oficial do Estado. O que faz enquanto está “fardado”
não é sua responsabilidade ética. Assim é a maneira eticamente fácil do
ativismo de resolver a responsabilidade moral de fazer aquilo que é moralmente
certo, independentemente daquilo que os governantes mandam. Neste aspecto, o
pacifismo corrige a facilidade ética do ativismo ao lembrar ao ativista que a
pessoa não pode divorciar sua ética particular da opinião pública. Não há razão
moral para apoiar a isenção de uma pessoa da responsabilidade por matança
injusta, simplesmente porque a faz como oficial público e não como cidadão
particular, (isto se aplica à polícia bem como aos soldados.)
Do outro
lado, o pacifismo também é uma maneira eticamente fácil de escapar a uma
confrontação com o problema moral real. O problema real é este: esta ou aquela
guerra específica é justa? (Ou, este ou aquele ato de guerra é justo?) O
pacifista não precisa lutar na procura de uma resposta. Sua posição eliminou
convenientemente, de antemão, a necessidade de sequer levantar a questão da
justiça desta ou daquela guerra. O pacifista total descansa confortavelmente na
pressuposição ingênua de que nenhuma guerra
poderia ser justa em hipótese alguma. A razão porque se diz que esta posição é ingênua
será dada abaixo, mas mesmo à parte destas razões, deve ficar claro que é
eticamente muito mais fácil dizer que toda guerra
é errada e que todo ato
de tirar uma vida é assassinato. O pacifista, como o ativista, desfruta do
conforto e da simplicidade da sua teoria geral sem olhar a dificuldade e a
complexidade dos fatos específicos.
2. O Mal
Deve Ser Resistido — Outra falácia no pacifismo é a premissa de
que o mal não deve ser resistido à força. Pelo contrário, é moralmente
injustificável não resistir
ao mal. Permitir um assassinato quando a pessoa poderia tê-lo impedido, é
errado. Deixar acontecer um estupro que a pessoa poderia ter evitado é um mal.
Observar um ato de crueldade a crianças, sem procurar intervir, é moralmente
indesculpável. Em síntese, não resistir ao mal é um pecado de omissão, e os
pecados de omissão podem ser tão maus quanto os pecados de comissão. Na
linguagem bíblica: “Aquele que sabe que deve fazer o bem e não o faz, nisto
está pecando.” (Tg 4: 17). E, certamente, é justo proteger os inocentes e
impedir os agressores malignos. O pacifista deixa de proteger os inocentes de
agressores injustos, e o ativista deixa de impedir os agressores malignos,
porque participa das suas guerras injustas.
O pacifismo é
realmente o não envolvimento ético. Recusa-se a usar meios realistas e
apropriados para proteger os inocentes. Qualquer pessoa que não atiraria num
louco estrangulando sua esposa ou filhos é moralmente insensível aos direitos
dos inocentes. Semelhantemente, o cidadão fisicamente capaz que não defenderia
sua pátria contra um agressor maligno é moralmente remisso. Ou a potência maior
que não ajudasse a defender os direitos de países menos poderosos que estão
sendo invadidos por Estados maiores, é moralmente irrealista. O pacifista total
facilmente pode achar-se ajudando uma causa má por meio de deixar de defender
uma causa boa. Destarte, o pacifismo completo é, na melhor das hipóteses,
moralmente ingênuo, e, na pior das hipóteses, moralmente delinqüente.
Outra luz adicional
sobre os males do pacifismo, é que leva ao escapismo político. Ou seja: o
pacifista tende a ficar desengajado do corpo político total. Às vezes, os
pacifistas, recusam-se a pagar impostos que estariam ajudando a sustentar uma
guerra travada pelo país. Outros pacifistas mais completos inferem que nenhum
cristão deve assumir qualquer cargo oficial em que exerceria poder político,
policial ou militar sobre não-cristãos. A suposição por detrás desta conclusão
é que o cristão não deve exercer qualquer outra força além da força espiritual
do amor, e que esta força espiritual é incompatível com o exercício do poder
político. A falácia deste raciocínio deve ser evidente. Supõe erroneamente que
o governo não é de Deus, e que a moralidade é essencialmente incompatível com o
governo.
O
ativismo, também, pode ser culpado de não resistir ao mal. Mediante a
obediência cega ao governo pelo motivo errôneo de que todas as decisões de um governo devem ser de
Deus, porque sua autoridade é de
Deus, a pessoa pode contribuir a uma causa maligna. Muitos que seguiram a
Hitler na sua tentativa de genocídio vieram a perceber o mal do ativismo cego.
A não ser que o cidadão se esforce para descobrir se as ordens do seu governo
são moralmente justas ou não, pode achar-se “patrioticamente” defendendo a
causa que é moralmente errada. Ou, a não ser que um cidadão determine se seu
país está tomando a posição certa debaixo de Deus,
pode estar atribuindo ao seu governo o lugar de Deus.14 Isto
seria idolatria, e a idolatria é errada, seja material ou governamental o
ídolo. Quando qualquer coisa menor do que Deus, como é o caso do governo,
torna-se objeto de uma dedicação ulterior (tal como “Minha pátria, certa ou
errada”), neste caso a pessoa ficou sendo um idólatra “patriótico.” O
patriota-cristão compromete-se a ser leal à sua pátria somente “debaixo de Deus.” Coloca sua pátria debaixo
de Deus e não troca Deus pela sua pátria.
O
seletivismo evita o dilema do não-envolvimento do pacifismo bem como do
patriotismo idólatra do ativismo. O seletivista compromete-se a resistir ao mal
sempre que é achado, com quaisquer meios apropriados disponíveis. Se isto
importar em tomar armas para resistir a um agressor maligno, o seletivista está
disposto a fazê-lo. E, visto que o seletivismo se compromete a defender ativamente
aquilo que é moralmente certo, é uma posição mais difícil do que as dos não-
seletivistas: É mais difícil porque é ativamente dedicada a resistir ao mal com
qualquer força que seja apropriada ao mal, resistindo o mal espiritual com a
força espiritual, o mal político com a força política, e até o mal militar com a
força militar. Além disto, o seletivismo é mais difícil porque o indivíduo deve
decidir, à luz da lei moral, quais guerras são justas e quais
não são. Reconhecidamente, esta não é uma tarefa fácil.
Finalmente,
o pacifismo não é apenas o escapismo moral, como também, na sua forma
consistente, leva ao entreguismo político.15 Isto porque o corpo político, pela sua
própria natureza, está envolvido com o emprego da força política, policial e
até mesmo militar — sendo que todas estas forças são inconsistentes com a
premissa de que o mal não deve ser resistido com qualquer coisa senão uma força
moral. Logo, a participação pessoal no corpo político comprometeria o pacifista
completo com o uso do tipo de força, ao resistir ao mal, que sua premissa
principal não permite. Mas supor que o cristão não deva estar no governo, na
polícia ou no exército, é contrário ao exemplo e ao ensino da Escritura. É uma
lógica estranha concluir que, embora o governo seja instituído por Deus como um
instrumento de justiça (Rm 13: 1, 2), e embora os cristãos sejam ordenados a
orarem pelos governantes (1 Tm 2: 1), mesmo assim, os próprios cristãos estão
proibidos de cumprir a instituição divina e suas próprias orações.
C. O Seletivismo e a Guerra Nuclear
O que foi dito em
defesa do seletivismo até agora aplica-se a guerras limitadas, mas não a
guerras em escala global com o uso de armas militares macro-nucleares. As armas
nucleares táticas são uma parte concebível de uma guerra limitada, mas o poder
nuclear em megatons é tão devastador que torna semelhante guerra
automaticamente injusta. O mesmo se pode dizer acerca das bombas
macro-químicas. Qualquer arma tão devastadora que pode eliminar setores
inteiros da população civil não pode ser moralmente justificada. Para as armas
serem qualificadas para uma guerra justa, devem ser limitadas e aplicáveis a
alvos militares. As armas nucleares em megatons são implementos irracionais e
imorais da guerra.
Com efeito,
portanto, quando se trata de uma guerra nuclear total, o seletivismo cristão
poderia ser chamado um pacifismo nuclear. O propósito da guerra é deter o
agressor, não destruí-lo completamente. Seu alvo é subjugar, mas não aniquilar
os inimigos. Para uma guerra ser justa, deve mirar a obtenção de uma paz que
estabeleça, com a ordem moral, alguma comunidade relevante no seu séquito. Se
esta não pode ser a expectativa razoável de uma guerra, conforme não pode ser
no caso da guerra nuclear total; neste caso permitir a agressão maligna seria
melhor do que o aniquilamento total. Salvar a raça é mais importante do que
ganhar a guerra, seja o que for que “ganhar” poderia significar em tal
situação. Em síntese, o seletivismo aplica-se somente à guerra limitada que
visa libertar um povo da agressão maligna e conservar uma comunidade que
progrida depois da guerra. Visto que uma guerra nuclear total não pode fazer
isto, é, por isso mesmo, uma guerra injusta. No ponto da guerra e destruição
universais, o seletivismo e o pacifismo se encontram. No ponto da guerra
limitada por uma causa justa o seletivismo e o ativismo se reúnem.
D. O Seletivismo e o Hierarquismo
Na
primeira seção deste livro (no capítulo sete) foi argumentado que há uma
hierarquia de normas éticas tal que, sempre que há um conflito a pessoa deve
obedecer à norma superior e quebrar a inferior. O princípio de leis éticas
superiores e inferiores pode ser visto em operação na posição do seletivismo. O
seletivista cristão, pois, reconhece que o governo é instituído por Deus e que
o cristão deve sempre se
submeter ao seu governo debaixo de Deus (1 Pe 2: 13). O seletivista cristão, no
entanto, reconhece uma obrigação superior àquela que o obriga ao seu governo.
Reconhece que o governo somente deve ser obedecido debaixo de Deus, mas não quando o
governo toma o lugar de Deus. Na eventualidade
de um conflito entre Deus e o governo, o seletivista está pronto a obedecer a
Deus ao invés de ao homem. Reconhece que há uma diferença entre aquilo que é de
César e aquilo que é de Deus, e aquilo que é de Deus é de valor mais alto do
que aquilo que é de César. Os poderes de César, pois, são delegados por Deus e
são transcendidos por Deus. Ou seja: a obrigação direta que a pessoa tem diante
de Deus é maior do que seu relacionamento indireto com Deus através do governo.
O governo, pois, é instituído por Deus para representá-lo na
área social e política da vida, mas o governo não era destinado a substituir Deus por meio de dominar
completamente a vida moral e religiosa do homem. Quando as leis inferiores (do
governo) entram em conflito com as leis superiores (de Deus), neste caso,
deve-se obedecer a Deus mais que aos homens.
Leituras Sugeridas
Agostinho, A Cidade de Deus, Livro XIV
Fromm,
Erich, O Homem
por si mesmo
Lewis,
C.S., Os Quatro
Amores
Tillich,
P. A Coragem de Ser
NOTAS
1. Cf. 1 Coríntios
14:33,40
2. No decorrer deste
capítulo todos os grifos acrescentados nas citações bíblicas serão nossos.
3. Carroll R. Stegall, “God and the USA in Vietnam ,” Eternity, março de 1968, pág. 15.
4. Crito, págs.
101, 102.
5. Ibid.
6. Esta
opção parece rejeitar claramente a autoridade do Antigo Testamento, e não é uma
alternativa viável para um crente evangélico. Talvez a objeção mais séria a
este conceito crítico do Antigo Testamento é que rejeita a autoridade de
Cristo, que verificou pessoalmente a autoridade e autenticidade básicas do
Antigo Testamento. Ver General Introduction to the Bible, capítulo 6, N.L. Geisler e
W.E.Nix.
7. Ou seja, Deus
poderia ter intervido e realizado Seus propósitos sem guerra, assim como fez na
queda de Jericó ou nos demais milagres em que Israel ganhou sem realmente
lutar.
8. É consistente com
a posição do pacifista sustentar que alguma força física pode ser usada para
refrear o mal, mas que nunca deve ser exercida ao ponto de tirar a vida de
outro ser humano.
9. Mateus 10:34; 26:52.
10. Dietrich Bonhoeffer, The Cost of Discipleship, trad. por R. H. Fuller,
Nova York: The Macmillan Company, 1963, págs. 159,
160. [N.E. Edição em português, O Discipulado, Ed.
Sinodal, 1983.]
11. Platão, República II, 374, trad. (inglês) por
Francis M. Cornford.
12. Platão, Fédon 66 e.
13. Interpretar esta
ordem de modo metafórico ou irônico, conforme fazem alguns pacifistas, é
contrário ao fato de que os discípulos trouxeram duas espadas literais, e de
que Jesus as aprovou (v. 38).
14. Veja mais
discussão sobre isto no capítulo nove.
15. Esta
consideração foi feita por William E. Nix no seu artigo: “The Evangelical and
War,” Journal
of the Evangelical Theological Society,
Vol. XIII, Parte III (Verão, 1970), pág. 138.
Extraído do livro “A
Ética Cristã”, Norman Geisler, Ed. Vida Nova
Nenhum comentário:
Postar um comentário