Atanásio, um dos maiores pais da Igreja
primitiva, nasceu em Alexandria por volta do ano de 295 d.C., provavelmente de
pais não cristãos e de língua grega, o que lhe deu ao menos a possibilidade de
crescer e aprender as primeiras letras longe da última perseguição que assolou
os cristãos egípcios entre os anos 303 e 312, embora aparentemente aquilo
tivesse afetado de alguma forma a sua infância e adolescência. Após uma vida à
qual nunca faltaram emoções e reviravoltas profundas, veio a falecer na sua
mesma Alexandria no dia 2 de maio de 373.
Teria vivido,
portanto, quase 80 anos, o que era uma expectativa de vida muito acima da média
da época. Viveu intensamente e deixou um legado dos mais valiosos para a consolidação
do cristianismo no Império Romano. Quanto à sua infância, entretanto, Gregório
Nazianzeno, em sua Oratio (21,6),
diz que “ele foi educado, desde o começo, nos hábitos e nas práticas
religiosas, após um breve estudo de literatura e filosofia, de maneira que ele
não podia ser considerado como incapacitado para esses assuntos, ou ignorante
em matérias as quais ele estava determinado em desprezá-las. Pois a sua alma
generosa e solícita não podia ficar ocupada com vaidades, como atletas
despreparados, que socam o ar ao invés dos seus adversários e perdem o prêmio.
Através da meditação em cada um dos livros do Velho e do Novo Testamento, com
uma profundidade que até então ninguém tinha aplicado a um só deles, ele
cresceu rico em contemplação e em esplendor de vida, combinando-os de maneira
marvilhosa num laço dourado que poucos conseguem alcançar; usando a vida como
uma guia de contemplação, e a contemplação como o selo da vida.”[1] Ainda
que pouco se saiba desse período, aparentemente Atanásio teve algum tipo de
influência cristã na sua formação. A sua produção literária na fase adulta
indica que é muito provável que ele tenha tido algum tipo de treinamento
filosófico, especialmente em Homero, Demóstenes, Platão, bem como outros
platônicos posteriores, o que mostra a importância que deu à cultura grega.
Entretanto, parecia também ser versado pelo menos na língua copta falada pelo
povo egípcio da época, o que lhe despertou o interesse inclusive para escrever,
posteriormente, “Vida e Conduta de Santo Antão”, sobre o padre eremita do
deserto que marcou tanto o início da igreja cristã no Norte da África. Já na
juventude e no início da idade adulta, aprenderá tanto da fonte do bem,
representada por Alexandre, bispo de Alexandria (a quem sucederia no
patriarcado local), como na fonte do mal, cujo maior símbolo foi Ário e sua heresia que ameaçou as
estruturas do cristianismo. Foi contemporâneo, portanto, de homens que
estiveram em lados opostos do grande combate que se travou sobre a natureza de
Cristo, e – ao tomar o partido da ortodoxia – deixou seu nome gravado para
sempre no rol dos heróis da fé. Hubertus R. Drobner tem uma versão curiosa
sobre os primeiros passos de Atanásio na fé:
Maior
probabilidade pode ser atribuída à “História dos patriarcas de Alexandria”, de
Severo Ibn al-Muqaffa (PO I/4, 407s) conservada em árabe. Atanásio, assim
relata esta história, seria filho de uma nobre e rica viúva de Alexandria, que,
depois de seu filho haver crescido, teria insistido para que contraísse
matrimônio, a fim de assumir os bens do pai. Mas como Atanásio não mostrasse
para isso a mínima inclinação, sempre de novo ela teria enviado belas jovens ao
seu quarto de dormir, para fazê-lo interessar-se pelo casamento e pela vida
civil. Mas, quando despertava, Atanásio sempre enxotava as moças. Desesperada, a
mãe teria procurado um mago conhecido na cidade, o qual, depois de conversar
com Atanásio, teria comunicado à mãe que seus esforços não poderiam obter
êxito, porque seu filho se dedicara ao cristianismo, mas que mesmo lá ele
haveria de ser um grande homem. Então, para não perder o filho, ela o teria
levado ao bispo Alexandre, que os teria batizado a ambos, mãe e filho. Após a
morte da mãe Alexandre teria recebido e educado Atanásio como filho, e mais
tarde o teria ordenado diácono, tomando-o como seu secretário.[2]
Seja lendário ou
não esse relato, tudo indica que a formação cristã de Atanásio se processou de
forma rápida e consistente, já que aos 17 anos de idade o patriarca Alexandre
de Alexandria o nomeia para o cargo de leitor da igreja. Em 318, já aos 23 anos
de idade, Alexandre o promove a diácono e secretário episcopal, isso numa época
em que Ário já estava em uma das igrejas de
Alexandria dando vazão a suas ideias polêmicas sobre a divindade de Jesus
Cristo. A controvérsia toma tal proporção que Alexandre convoca um sínodo
local, ao qual compareceram cerca de 100 prelados da região, que termina por
condenar as ideias de Ário, expulsando-o
da Igreja em 321. Eusébio de Nicomédia então o recebe e passa a protegê-lo, e a
polêmica chega aos ouvidos de Constantino, que – preocupado com a unidade da
Igreja que era o cimento do seu império – tenta apaziguar os ânimos, enviando
Ósio de Córdoba à região na tentativa de mediar a crise, com uma carta pessoal
sua endereçada aos dois principais contendores, em que diz que considerava
aquilo “uma inútil disputa entre teólogos”[3], mas que não consegue fazê-los chegar a um
acordo satisfatório a todas as partes envolvidas. Diante do impasse, não há
outra solução senão convocar o concílio ecumênico de Niceia, que se realizaria
no ano 325 e no qual estariam representados todos os bispos da cristandade,
para se dirimir finalmente a questão. Agendado o concílio, começa então uma
verdadeira guerra diplomática (para os padrões da época) dentro da Igreja. O
próprio Ósio, entretanto, participaria de um concílio local em Antioquia pouco
tempo antes de Niceia, no qual seriam condenados Eusébio de Cesareia e outros
partidários de Ário. Este ensinava
“uma doutrina que se pode sintetizar nestas Três frases: ‘O Verbo não é eterno
nem tem a mesma natureza do Pai. Foi criado no tempo por Deus Pai. Só por
metáfora é que lhe chamamos Filho de Deus’. Ário e seus discípulos separam, assim, o
filho do Pai. Afirmam que o Filho não existia antes de ter sido gerado. Se
houve, portanto, um tempo em que ele não existia, ele não é coeterno ao Pai.
Ele, o filho, é a primeira e a mais sublime das criaturas, uma espécie de
‘segundo deus’ (déutero theós) mas
é alheio ao Pai quanto à essência, como a vinha ao vinhateiro ou o navio ao
construtor”[4].
Em sua Oratio (cap.6), Gregório Nazianzeno dá um
destaque enorme à figura de Atanásio durante o concílio de Niceia, que se
realizou entre os dias 20 de maio e 25 de agosto de 325. Chega a dizer que o
diácono teve voz ativa durante as deliberações, o que é difícil de acreditar já
que apenas os bispos tinham esse direito. É certo, entretanto, que Atanásio
teve muita influência na formulação das ideias de seu bispo Alexandre, que
antes da abertura dos trabalhos do concílio, envia uma carta encíclica aos seus
pares, fazendo questão de ressaltar a verdadeira dimensão da controvérsia.
Nela, há claros sinais da gênese do pensamento de Atanásio, que o acompanharia
por todas as muitas polêmicas cristológicas que ainda iria enfrentar durante
sua longa vida:
Quem ouviu, alguma
vez, semelhantes coisas? Quem, agora que as ouve, não tapará os ouvidos para
impedir que essas ignóbeis palavras cheguem até eles? Quem, ouvindo João dizer:
“No princípio era o Verbo” (Jo 1,1), não
condenará os que dizem “Houve um tempo em que ele não era”? Quem, ainda,
ouvindo estas palavras do Evangelho “Filho único de Deus” (Jo 1,18) e “Tudo foi feito por meio dele” (Jo 1,3), não detestará os eu afirmam que o Filho é
uma das criaturas? Como pode ele ser igual ao que foi feito por ele? Como pode
ser Filho único aquele que elencamos com todas as coisas, na categoria destas?
Como viria ele do nada, ao passo que o Pai diz: “De meu seio, antes da aurora,
eu te gerei” (Sl 109,3)? Como
seria ele, em sua substância, diferente do Pai, ele que é a imagem perfeita e o
esplendor do Pai (2 Cor 4,4; Hb 1,3) e que diz: “Quem me vê vê o Pai” (Jo 14,9)? Se o Filho é o Verbo e a Sabedoria do Pai,
como teria havido um tempo em que ele não existia? É como se dissessem que
houve um tempo em que Deus não tinha Palavra nem Sabedoria. Como está sujeito à
transformação e à alteração aquele que diz de si mesmo: “Eu estou no Pai, e o
Pai está em mim” (Jo 10,38) e “Eu e
o Pai somos um” (Jo 10,30), e que
disse pelo profeta: “Vede-me; eu sou e não mudo” (Ml 3,6)? Mesmo que se pense que essa palavra pode
ser dita pelo próprio Pai, seria agora, no entanto, mais oportuno, julgá-la
dita por Cristo, porque, tornado homem, ele não muda, mas, como diz o Apóstolo,
“Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje e pela eternidade” (Hb 13,8). Quem os leva a dizer que é por nós que ele
foi feito, enquanto São Paulo diz: “Para ele e por ele todas as coisas existem”
(Hb 2,10)? Quanto à sua afirmação
blasfema de que o Filho não conhece perfeitamente o Pai, não seria de causar
surpresa, pois, uma vez que eles se decidiram a combater Cristo, desprezam
também as palavras do próprio Senhor que diz: “Como o Pai me conhece, eu também
conheço o Pai” (Jo 10,15).
(a partir da
tradução de I. Ortiz de Urbina, Nicée et Constantinople, 1963, pp. 250-251)[5]
Não há
estatísticas exatas sobre o número de bispos que afluíram a Niceia para o
primeiro grande concílio ecumênico da Igreja Cristã. Estima-se entre 250 a pouco mais de 300 o
número de participantes com direito a participação ativa e a voto nas
deliberações. Silvestre I, bispo de Roma, foi um dos ausentes, mas mandou
representantes. Isto se devia basicamente ao fato de que o cristianismo era majoritário
no Oriente e ainda minoritário no Ocidente. Atanásio e Ário não eram bispos e, portanto, não
podiam participar do conselho, tendo sido esse último representado por seu
protetor Eusébio de Nicomédia. No campo contrário, Alexandre de Alexandria se
via em posição de fraqueza não tanto pela oposição dos arianos, mas porque
poucos bispos sabiam exatamente da gravidade do que iria ser discutido no
conclave. Todos, de certa maneira, já estavam preocupados em formular um dogma
que, por descuido de palavras, favorecesse os sabelianistas, discípulos de
Sabélio (falecido em 215 d.C.) que defendiam uma espécie de unitarismo, em que
o Filho e o Espírito Santo seriam “modos” de manifestação de Deus, e não
Pessoas co-substanciais com o Pai entre si, daí também ser chamado de
“modalismo”. Os sabelianistas, por seu lado, provavelmente perceberam que a
posição de Ário era muito mais grave e potencialmente
já condenada, e trataram de não fazer alarde sobre suas próprias posições, a
fim justamente de que pudessem depois distorcer o resultado do concílio a seu
favor, o que por sinal terminou acontecendo. Havia, além disso, a presença do
imperador em pessoa, mostrando a todos que era do seu mais profundo interesse
uma solução pacífica o menos desagregadora possível. Não se sabe exatamente
como é que as sessões de discussão se desenvolveram, mas tudo indica que
Eusébio de Nicomédia tenha feito uma exposição inicial dos ensinos dele próprio
e de seus “companheiros lucianistas” (um eufemismo para “arianos”) e aí ele foi
muito mal ao advogar escancaradamente uma espécie de subordinação do Filho ao
Pai, o que escandalizou a maioria dos bispos presentes. Mal a discussão
começara e a causa ariana estava perdida por uma razão muito simples de
entender: se o Filho não era tão Deus como o Pai, então não houvera sacrifício
válido do Salvador, já que qualquer outra criatura poderia ter sido sacrificada
no seu lugar, e isto era um pensamento em relação a Jesus extremamente ofensivo
para a Igreja cristã. Toda a sua pregação de salvação em Cristo, a prevalecer
essa ideia, cairia por terra. Alexandre, sempre assessorado por Atanásio, havia
sido muito melhor diplomata que seus oponentes. A solução encontrada após
longos debates foi estabelecer o Credo (que leva o nome do concílio) em que
ficava claro que Jesus Cristo é “Filho de Deus, gerado do Pai, Unigênito, isto
é, da substância do Pai, deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro, gerado, não-feito, de uma substância com o Pai, mediante o qual
todas as coisas vieram a existir”. Curiosamente a palavra aqui traduzida por
“substância” em “da substância do Pai” vem do grego homoousios (“consubstancial”) e foi sugerida pelo
próprio Constantino. Quase todos os presentes assinaram o Credo de Niceia, com
exceção de Ário e dois bispos líbios (uma das razões
pelas quais se imagina que Ário também era líbio), que foram
condenados e exilados na Ilíria. Eusébio de Nicomédia e Teógnis de Nicéia, que
continuaram no erro após o concílio, depois foram depostos e exilados na Gália.
Os livros de Árioforam queimados
em razão dos anátemas proferidos na ocasião: “Os anátemas do concílio
estendiam-se a todos aqueles que alegavam “que houve um tempo em que ele não
existia”; “antes da Sua geração Ele não existia”; “Ele foi feito do nada”; “o
Filho de Deus é de outra subsistência ou substância”; e “o Filho de Deus [é]
criado ou alterável ou mutável”.”[6]. Como comenta Louis Berkhof:
Além das partes
contendoras, havia um grande partido intermediário, que realmente constituía a
maioria, sob a liderança de Eusébio de Cesaréia, o historiador da Igreja, sendo
que aquele partido também era conhecido como partido origenístico, pois se
fundamentava sobre os princípios de Orígenes. Esse partido tendia em favor de Ário, pois
opunha-se à doutrina que o Filho é da mesma substância com o Pai (homoousios). Ele propusera uma declaração, redigida
previamente por Eusébio, que concordava em tudo com o partido de Alexandre e Atanásio,
com a única exceção da doutrina acima nomeada; e sugeria que a palavra homoousiosfosse
substituída pelo termo homoiousios, para que ensinasse ser o Filho de
substância similar à do Pai. Após considerável debate, finalmente o Imperador
lançou o peso de sua autoridade na balança, dando a vitória ao partido de
Atanásio. O concílio adotou a seguinte declaração a respeito da questão em
pauta: “Cremos em um Deus, o Pai Todo-Poderoso, Criador das coisas visíveis e
invisíveis. E em um Senhor Jesus Cristo, gerado, não criado, sendo da mesma
substância (homoousios) com o
Pai”, etc. Foi uma declaração inequívoca. Não se poderia torcer o vocabulário homoousios para que significasse outra coisa
qualquer do que o fato de que a essência do Filho é idêntica à do Pai. Situava
o Filho no mesmo nível com o Pai, como um Ser incriado, e reconhecia-o como autotheos[7].
Como a redação do
Credo de Niceia permitia que, além dos sabelianos, outros grupos como o de
Eustáquio de Antioquia e de Marcelo de Ancira (atual Ancara na Turquia) se
sentissem autorizados a fazerem interpretações muito particulares de tipos
velados de monarquianismo, em que o Filho teria algum grau de subordinação ao
Pai. Aos poucos, essas desavenças teóricas foram minando os resultados do
Concílio de Niceia, e por volta do ano 328, Eusébio de Nicomédia e Teógnis de
Niceia foram autorizados a voltarem do exílio. Eusébio tinha amigos próximos na
família imperial, e fazia de tudo para influenciar a visão moderada de
Constantino, que gostava muito de botar panos quentes nas controvérsias
eclesiásticas e arranjar um meio de acomodar todas as correntes contrárias no
seio da Igreja. Os defensores do concílio predominaram por cerca de 5 anos após
o seu término, afinal Roma, Alexandria e Antioquia eram presididas por fortes
apoiadores de suas conclusões. Os arianos trataram, então, de se movimentarem
politicamente e fizeram de tudo para mostrar ao imperador que não eram tão
obstinados assim e queriam contemporizar. Existe a suposição, não confirmada,
de que tenha havido um segundo sínodo em Niceia no ano 327, com muito menor
afluência de bispos, que de alguma maneira teria reabilitado Ário, o que parece
não corresponder à verdade dos fatos[8]. Ário escreveu uma carta ao imperador,
dizendo-se pronto a aceitar um compromisso com a ortodoxia, subscrevendo o
Credo de Niceia, fazendo com que Constantino fosse paulatinamente cedendo aos
seus apelos.
Havia um problema,
entretanto. Alexandre, o grande defensor da ortodoxia em Alexandria e no mundo
cristão da época, morre em 17 de abril de 328, mas antes de morrer, segundo
consta, teria já designado Atanásio como seu sucessor. É importante lembrar que
a situação da igreja em Alexandria era explosiva. Além do perigo ariano, havia
também melicianos[9] que
ainda eram influentes na região, e Atanásio, além de jovem para o episcopado,
era o inimigo comum deles. O maior inimigo deles até então, Alexandre, havia
morrido, e os dois partidos queriam retomar o controle da sede patriarcal egípcia
antes que um inimigo ainda mais temido, Atanásio, se assentasse na cadeira de
bispo. Os aliados da ortodoxia foram mais rápidos, entretanto, e em 8 de junho
consagraram Atanásio como patriarca de Alexandria. Sempre é importante lembrar
que, nessa época, o bispo não era nomeado pelo bispo de Roma, como querem fazer
crer os católicos romanos, mas eram escolhidos por seus pares da região.
Entretanto, a pressa fez com que esse ato se processasse de maneira
extremamente informal, e houve quem questionasse a sua validade (é fácil
imaginar quem tinha interesse em ver Atanásio bem distante de Alexandria). A
discussão chegou até Constantino, que, numa dessas atitudes misteriosas que
contrariavam a índole e o pendor então ariano do imperador, confirmou Atanásio como
bispo de Alexandria. É impressionante como Constantino, apesar de todas as
críticas e teorias da conspiração que o envolvem, sempre tomou decisões
corretas (e contrárias ao que pensava naquele preciso momento) quando se
tratava de proteger a ortodoxia da fé cristã. Talvez Constantino imaginasse que
Atanásio lhe seria grato pela sua concordância com sua consagração, e receberia Ário de braços abertos às portas da sede
patriarcal, mas ao novo bispo importava antes agradar e obedecer a Deus que aos
homens (Atos 5:29), mesmo
que esse homem fosse um imperador romano poderoso como Constantino era.
Atanásio se recusou terminantemente a qualquer tipo de reconciliação com Ário, bem como
tratou de percorrer toda a sua jurisdição consolidando sua autoridade e
pregando contra os arianos e melicianos, bem como procurando afastar suas
ovelhas de qualquer possibilidade de contaminação com as heresias que esses
grupos pregavam. Esses, por seu lado, trataram de se opor a Atanásio de todas
as formas possíveis e imagináveis, tendo os melicianos chegado a nomear um
antibispo[10], e ambas as correntes heréticas não cansavam
de acusá-lo com as mais terríveis calúnias que lhe viessem a cabeça: corrupção,
traição e até o assassinato do bispo meliciano Arsênio. Por ironia do destino,
antes de qualquer possibilidade de investigação ou julgamento, Atanásio
apresentou Arsênio vivo, são e salvo. Talvez não tão salvo assim...
Desnecessário
dizer, portanto, que Constantino não via a hora de se livrar de Atanásio, ante
a oposição reiterada desse às suas ordens. Sobre essa desavença entre os dois,
o historiador Paul Johnson reproduz o trecho de uma carta enviada pelo
imperador ao bispo por volta do ano 328: “como você conhece meus desejos, ore
para admitir livremente todos que desejarem ingressar na igreja. Caso chegue
aos meus ouvidos a notícia de que você impediu alguém de tornar-se membro,
imediatamente enviarei um oficial para depô-lo e enviá-lo para o exílio”[11]. Houve, portanto, um sínodo marcado
especialmente para puni-lo na Cesareia no ano 334, mas Atanásio não compareceu.
No ano seguinte, o imperador apresentou nova acusação contra o patriarca de
Alexandria, dizendo que ele teria ameaçado interromper os abastecimentos de
trigo do Egito para Roma, e no sínodo de Tiro (em 335), presidido pelo bispo
então eusebiano Flacilo de Antioquia (influenciado pelos dois Eusébios, o de
Nicomédia e o de Cesareia), condena Atanásio e Constantino o exila em Trier (em
7 de novembro de 335). Antes, entretanto, em 17 de setembro de 335, o Sínodo de
Jerusalém havia resolvido restaurar Ário à comunhão “em presença do imperador
Constantino e dos dois Eusébios, depois dele haver apresentado uma profissão de
fé satisfatória, e exigiu das igrejas de Alexandria e do Egito que dessem o
cisma por encerrado”[12]. O imperador então determina que Ário reassuma suas funções com outro
Alexandre, patriarca de Constantinopla. Este, contrariado, teria orado
fortemente pedindo a Deus que Ário morresse antes que isso ocorresse. A
reza deve ter sido braba, pois na véspera do dia em que isso aconteceria, já no
ano 336, Ário morre em condições misteriosas. Alguns
historiadores ainda criaram versões míticas, tentando atribuir sua morte súbita
a algum tipo de castigo divino, mas a causa mais provável, dado os costumes
daquele tempo, é que ele tenha sido envenenado. Terminava assim a carreira do
maior heresiarca que a Igreja primitiva conheceu. Constantino morre em 22 de
maio de 337, mas dizem os historiadores que ele teria esperado até os últimos
dias de vida para ser batizado, ato que foi realizado no seu leito de morte
pelo bispo ariano Eusébio de Nicomédia, em outra dessas muitas ironias do
destino que cercam os personagens da controvérsia ariana.
O império romano é dividido então entre
os três filhos de Constantino: Constantino II (a quem coube a Europa Ocidental
e o norte do atual Marrocos na África), Constâncio II (Ásia Menor, Oriente
Médio e Egito) e Constante (Europa Central, Itália e Norte da África até a
Líbia). No princípio, Constantino II era tutor de seu irmão menor Constante, e
comandava o território que cabia a este último, mas uma vez que Constante
atingiu a maioridade, seu irmão mais velho não quis lhe devolver o controle da
parte que lhe cabia, pelo que houve uma guerra entre os dois, e Constantino II
morre em 340, na batalha de Cervenianum, na Aquileia, ficando Constâncio como
imperador também do território que havia sido legado pelo pai ao finado irmão.
Tréveris (atual Trier e – curiosamente – cidade natal de Karl Marx), onde
Atanásio estava exilado, ficava no nordeste da então Gália (no sudoeste do
território hoje pertencente à Alemanha), nos limites entre o Império Romano e
os povos germânicos, sob a jurisdição de Constantino II, que permitiu então que
o bispo proscrito voltasse para Alexandria, convocando um novo sínodo para Tiro
em 338, a
fim de confirmar sua decisão e anular a condenação anterior. Os eusebianos
provocaram uma rebelião civil em Alexandria , colocando Gregório da Capacócia à
força no patriarcado local e Atanásio teve que abandonar a cidade em 18 de
março de 339, buscando imediatamente refúgio em Roma, onde o papa Júlio o
acolheu e tomou seu partido, buscando restaurá-lo a bispo de Alexandria em 341,
mas Constâncio II, imperador do Oriente que tinha jurisdição sobre Alexandria,
reuniu um concílio em Antioquia para manter a condenação de Atanásio. Um novo
concílio foi realizado em Sérdica nos anos de 342 e 343, buscando apaziguar as
posições do Oriente e do Ocidente, sem sucesso. Gregório capadócio não teve
vida fácil em Alexandria, já que havia tomado posse do patriarcado com a ajuda
da milícia imperial, e sua nomeação era vista como irregular pelos bispos
egípcios porque ele havia sido ordenado fora da sede patriarcal, vindo a morrer
ali mesmo em 25 de junho de 345. Sob pressão de seu irmão, o co-imperador
Constante, Constâncio II se absteve de substitui-lo e, a contragosto, chamou
Atanásio de volta. Este resistiu um pouco ainda, mas acabou aceitando e, em 21
de outubro de 346, fez seu retorno triunfal a Alexandria, sendo muito bem
recebido por sua antiga igreja.
Começa aí, então,
a chamada “década de ouro” de Atanásio, período em que pode se dedicar a seus
trabalhos pastorais, literários e intelectuais com toda a genialidade que lhe
era característica. Em 348 escreve “Apologia contra os Arianos”, uma obra em
três livros em que narra a sua perspectiva sobre a controvérsia ariana. Entre
350 e 351 escreve a “Epístola sobre o Decreto do Concílio de Niceia”, em que
faz uma defesa apaixonada do termo homoousios (“consubstancial”,
“da mesma substância”) para a relação entre Deus Pai e Deus Filho. A relativa
calma é interrompida pela preocupação com o assassinato de seu protetor
Constante em 18 de janeiro de 350 e a unificação do império debaixo do comando
de seu inimigo Constâncio II no mesmo ano. O novo imperador ainda passou 3 anos
preocupado com o usurpador Magnêncio até batê-lo em 353, e a partir daí tratou
de uniformizar a visão religiosa do império de acordo com suas tendências
arianas. Atanásio foi condenado então em dois concílios ocidentais, em Arles
(353) e Milão (355). Diante da resistência alexandrina, ele consegue fugir de
uma tentativa de prisão levada a cabo pelo general Siriano na igreja de São
Teonas em 8 de fevereiro de 356, e se esconde no deserto, onde conhece os
eremitas que por lá vagavam, onde escreve várias cartas e alguns livros em sua
defesa, e encontra inspiração para escrever “Vida e Conduta de Santo Antão”, um
tratado não só biográfico sobre Antão, mas um registro histórico essencial para
se entender o que foi o monaquismo (os “padres do deserto”) no início da Igreja
cristã. Entretanto, o historiador Paul Johnson aponta outra razão para Atanásio
buscar um relacionamento mais próximo com os padres do deserto: eles “falavam
copta, como as massas egípcias, e traduziam em termos familiares, além de popularizar,
sob a forma de bordões, as complexas formulações dos especialistas teologais”[13]. Assim, mesmo no exílio, Atanásio buscava
uma forma de comunicar as grandes verdades doutrinárias da fé cristã de maneira
que todo o povo sob seus cuidados as entendesse.
Outro capadócio,
de nome Jorge (não o santo do dragão) é nomeado bispo de Alexandria em 24 de
fevereiro de 357, mas se porta da maneira tão violenta contra os partidários de
Atanásio e mesmo os pagãos da cidade que é expulso de lá a 2 de outubro de 358,
regressando após 3 anos, mas para sua infelicidade, seu protetor Constâncio II
morre alguns dias antes dele reassumir sua sede patriarcal, em 26 de novembro
de 361, pelo que foi vítima de nova rebelião popular conjunta de pagãos e
cristãos que o encarceram na véspera do Natal daquele ano, mas a multidão
revoltada o retira à força da prisão e o linchou, juntamente com dois
funcionários da administração imperial, tal era o ódio que ele despertava na
população. Sabedor da situação nada favorável aos arianos em Alexandria, o novo
imperador Juliano revogou o decreto de exílio de Atanásio no bojo de uma
decisão íntima sua que era – na verdade – restaurar o paganismo no Império, e o
grande bispo retornou uma vez mais à sua cidade, em 21 de fevereiro de 362.
Entretanto, por se envolver em nova disputa contra o ortodoxo Melécio, que era
apoiado por Basílio de Cesareia, desta vez em Antioquia, onde Atanásio defendia
a nomeação do presbítero também niceno Paulino àquela outra sede patriarcal,
isto porque Melécio era apoiado pelo amigo Acácio de Cesareia, que havia
sucedido Eusébio naquela igreja e tinha sido um dos perseguidores eusebianos de
Atanásio . Esse novo movimento político-religioso de Atanásio – que agora não
tinha um substrato ariano - não foi bem recebido por Juliano, que considerava o
bispo de Alexandria o seu “maior inimigo”[14] e
novamente o exilou 8 meses após havê-lo readmitido, em 24 de outubro de 362.
Entretanto, nesse curto período, Atanásio convocou um sínodo que representou um
golpe mortal nas pretensões arianas, como conta Justo L. González:
A falta de
precisão nos termos empregados nessa discussão foi uma das dificuldades que a
igreja do século 4º encontrou na tentativa de esclarecer o relacionamento entre
o Pai e o Filho. No Ocidente, uma terminologia mais fixa já havia sido
alcançada, e o termo “substância” era usado para se referir à divindade única e
comum, enquanto que a individualidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo era
expressa por meio do termo “pessoas”. O Oriente, por outro lado, não havia a
mesma precisão e firmeza na terminologia. Para os teólogos orientais, ousia e hypostais eram
sinônimos – e como tais eram usadas nos anátemas acrescentados ao credo niceno
– e não havia termo que pudesse traduzir adequadamente “persona” do latim, pois
o grego “prosopon” poderia ensejar interpretações sabelianas. Portanto, quando
os defensores nicenos falavam de uma única ousia, muitos bispos orientais viam isto como uma
tentativa de reintroduzir o sabelianismo. E quando os bispos mais conservadores
– neste caso os homoiousianos –
falavam de uma dualidade de ousiai, os nicenos pensavam que isto era meramente uma
nova forma de arianismo. [...]
Foi nesta conjuntura que Atanásio deu um
passo decisivo que levaria finalmente à vitória da fé nicena: em um sínodo
reunido em 362 d. C., foi declarado que as diferenças verbais não eram
importantes, contanto que o significado fosse o mesmo. Assim, ambas as frases
“três hipóstases” e sua contraparte “uma hipóstase” são aceitáveis contanto que
a primeira não seja interpretada de tal modo que apoie o triteísmo ou a última
de um modo sabeliano. Com esta decisão, o grupo niceno abriu caminho para uma
aliança com a maioria conservadora. Começava agora um longo processo de
esclarecimento do significado dos vários termos, com vistas a alcançar uma fórmula
aceita por todos e a consequente condenação definitiva do arianismo.
A importância do
sínodo de Alexandria de 362 d. C. não está limitada a seu espírito conciliador,
mas é devida também a sua posição quanto ao Espírito Santo. O arianismo, ao
negar a divindade absoluta do Verbo, era levado à mesma conclusão com relação
ao Espírito Santo. E os bispos reunidos em Niceia, ao concentrarem sua atenção
na divindade do Verbo – que era o ponto crucial da controvérsia – não deram
muita importância à questão do Espírito; simplesmente, subscreveram a frase: “e
no Espírito Santo”. Portanto, o Concílio de Niceia não discutiu a questão
trinitariana como um todo. Durante os anos entre este Concílio e o sínodo
alexandrino de 362 d. C., porém, na tentativa de esclarecer e definir os
assuntos em debate, muitos teólogos deram mais atenção à questão da divindade
do Espírito Santo.[15]
Exilado de novo,
Atanásio então proferiu uma pequena profecia que se tornou famosa: “É somente
uma nuvenzinha e passará logo”. De fato, 8 meses depois, em 26 de junho de 363,
Juliano é ferido mortalmente numa batalha contra os persas e seu sucessor,
Joviano, era fiel aos cânones de Niceia, e determina o retorno de Atanásio a
Alexandria. Só que, quando ele já havia regressado à sede patriarcal, Joviano
morre desafortunadamente em 17 de fevereiro de 364, vítima do braseiro que
estava dentro de seus aposentos fechados, e seu sucessor, Valentiniano, embora
neutro em questões eclesiásticas, nomeia o irmão Valente, simpatizante da
posição ariana, como imperador do Oriente, pelo que retomou os decretos de
Constâncio II, tentando impor a visão herética à população de Alexandria. Desta
vez, Atanásio dá um toque de espontaneidade a seu forçado vai-vém alexandrino e
se afasta pacificamente de sua diocese em 5 de outubro de 365. O imperador,
entretanto, expede um edito em 1º de fevereiro de 366, permitindo-lhe voltar.
Atanásio tem agora cerca de 70 anos de idade, e a partir daí não é mais
perturbado por ninguém. Em 367, Atanásio mostra a sua importância em outra
seara, a formação do cânon do Novo testamento, quando apresenta uma lista dos
livros canônicos em suas “Cartas Pascais”. Dirige sua amada sede patriarcal
apor mais 7 anos, até que na noite de 2 ou 3 de maio de 373, quando imaginava
alguma maneira de auxiliar Basílio de Cesareia (que insistia na unificação da
igreja de Antioquia), parte para os braços do Senhor após uma longa, conturbada
mas abençoada vida de serviço cristão e fortalecimento dos irmãos na verdadeira
fé. Como diz Jacques Liébaert, “se a cristandade foi capaz de superar uma das
mais graves provas de sua história, é em boa parte a esse homem intransigente e
inflexível, firme na sua crença, a esse bispo antes de tudo preocupado com o
bem da Igreja, que ela o deve”[16]. Sucede-o seu discípulo valioso Dídimo, o
Cego, que havia perdido a visão aos 4 anos de idade, mas era dono de uma
memória prodigiosa, e que manterá a ortodoxia em Alexandria durante toda sua
vida, num período de paz que Atanásio não chegou a experimentar, mas contribuiu
decisivamente para que ocorresse.
Notas
1. Gregory
Nazianzus, Select Orations, Sermons, Letters; Dogmatic Treatises,
transcrito in Nicene and Post-Nicene Fathers, 2nd Series, ed. P.
Schaff and H. Wace, (repr. Grand
Rapids MI : Wm. B.
Eerdmans, 1955), VII, pp. 270-271
6. Walter A. Elwell (org.), “Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã”. São Paulo: Vida Nova, 2009,
p. 106
7. Louis Berkhof, “A História das Doutrinas Cristãs”, São Paulo:
Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 80
9. Pedro era o patriarca de Alexandria entre 300 e
311, ano em que foi decapitado pela repressão de Diocleciano. Pedro passou boa
parte do seu episcopado preso juntamente com vários outros líderes durante a
última perseguição no Egito, que durou de 303 a 312, e Melício de Licópolis aproveitou a
ausência do patriarca para rejeitar toda e qualquer reconciliação de cristãos –
salvo por rebatismo - que haviam negado a fé diante da tortura e ameaça de morte,
bem como tratou de nomear e ordenar novos bispos para as sedes vacantes de cada
igreja sob a jurisdição de Alexandria, gerando um cisma na igreja. Num dos
intervalos entre um cárcere e outro, Pedro reassumiu sua sede patriarcal e
condenou Melício e seus seguidores, que, entretanto, continuaram fortes por
algum tempo naquela região.
10. “Os melicianos, que haviam escolhido um
antibispo, uniram-se depois com o partido ariano agrupado em torno de Eusébio
de Nicomédia e tentaram conseguir a deposição de Atanásio através de processos
criminais.” (Hubertus R. Drobner, op. cit., p. 257)
15. Justo L. González, “Uma História do Pensamento Cristão”. São Paulo:
Cultura Cristã, 2004. Vol. I, pp. 275-276
16. Jacques Liébaert, “Os Padres da Igreja [Séculos I – IV]”. São Paulo:
Loyola, 2000, vol. 1, p. 167